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É constrangedor saber que quanto  mais velha é a população, maior é a proporção de analfabetos. O IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística revela que no ano passado (2018), existiam 6 milhões de brasileiros acima dos 60 anos que não sabiam ler nem escrever. O número (enorme) equivale a um índice de analfabetismo de 18,6% para esse grupo etário. Na média. No nordeste são 37%. E em Minas Gerais, segundo uma pesquisa da PUC de anos atrás, cerca de 30% dos idosos eram analfabetos.

Mais assustador é pensar que um contingente gigante de velhos brasileiros são analfabetos funcionais, ou seja, sabem ler e escrever, mas pouco  entendem o que leem e não são capazes de escrever uma simples carta. Ok, isso não é  o fim do mundo, mas traz sim mais dificuldades no dia a dia. Causa-me aflição quando vejo alguém sem nenhum problema cognitivo ou qualquer outra coisa que a impeça, ser totalmente excluído da cultura escrita. Vivemos, ainda, uma situação que o país  tem que lidar com mais seriedade, afinal, se o mundo (com algumas exceções) não trata bem as pessoas mais velhas, imagine ser velho e analfabeto…

Foi em uma sala de aula na periferia de Belo Horizonte que encontrei vários idosos  estudando no projeto EJA – Educação de Jovens e Adultos (notem que não há menção a velhos…). As histórias de vida são bem parecidas, a maioria é mulher, nasceu e cresceu na roça e nunca estudou porque papel de mulher era trabalhar, cuidar dos irmãos e da plantação, sem tempo para sonhar.

“Mesmo sem tempo, eu sonhava”, me conta Dona Maria, 74 anos. Relata que o pai sempre dizia que mulher que ia à escola era para mais tarde escrever carta para o namorado e isso não podia…  Para ser uma boa moça e encontrar um marido, ela aprendeu cedo a cozinhar, arrumar, lavar, passar e bordar. Nunca viajou nem foi ao cinema (não havia). Maria casou-me e veio para a cidade grande. Foi a primeira e única viagem até agora: sair da zona rural de Governador Valadares para Belo Horizonte. Teve nove filhos e trabalhou muito fazendo faxina em casas. Nunca invejou suas patroas (conforme me assegurou), mas sonhava ter vida melhor. Mais tarde, enviuvou e, aos poucos, se libertou das velhas estradas e começou a trilhar novos caminhos. Fiquei emocionada quando ela abriu o caderno para mostrar sua letra. Linda, cuidadosa.  Despisto, como medo de constranger a senhora. Por dentro estou sorrindo e ela sorri com os olhos. 

E ela falava até. Senti que o seu coração voava quando me contava da  adolescência no interior. Era capinando e cuidando da horta que a jovem Maria  via um rapaz passar a cavalo. Ele sempre passava, só faltava aos sábados e domingos. Com isso, o trabalho na terra se tornou um prazer. Acordava cedo e se retirava para ficar perto dos legumes e verduras, cultivando sonhos: quem seria aquele homem, como seria a sua voz, o seu cheiro? E por que não se aproximava? 

Era domingo, dia de missa. A família se aprontava e ia cedo para encontrar banco disponível na pequena igreja do distrito. Maria, os pais e os quatro irmãos (todos homens). Ela envergonhava-se do mesmo vestido branco, surrado pelo tempo. Mas, pelo o que me contou, a cada semana, fazia pequenos bordados para que a peça parecesse nova. Tratei logo de saber se havia fotografias dessa época. “Pobre não tirava retratos”, diz.  Não preciso fazer esforço para imaginá-la vestida de branco e  a sensação fica mais latente  quando me conta que fazia o próprio perfume. Colhia as flores mais perfumadas do jardim, lavava-as bem e depois as colocava em água fervente. “Depois era deixar esfriar e descansar… Coava e, antes de usar, deixava em vidro alguns dias bem fechadinho em lugar escuro”. Antes de ir à missa, Maria quase se banhava com o perfume. “Queria que as pessoas sentissem meu cheiro”, relembra.

E foi em um dia de missa que encontrou o jovem cavaleiro, olharam-se e “o meu coração disparou”, recorda-se. Viu-o outras vezes e nunca se falaram, só se olhavam. “Na época erámos tímidos demais, tínhamos medo (ou vergonha) de tudo. Meu pai há havia decidido com quem ia me casar. Não reclamei. Casei, vivi 34 anos com meu marido e a separação só aconteceu porque ele morreu”. Fico encantada ao ouvir Maria, uma mulher que está sendo alfabetizada aos 74 anos. Mesmo sem ter consciência, ela é um ser humano em construção (de fato, estamos sendo construídos o tempo todo, independente da idade)  e está a procura de novos momentos. “Ainda quero ler um livro inteiro, quero voltar à minha terra e quem sabe encontrar meu príncipe cavaleiro?”, solta-se. “Sabe o nome?”, pergunto. “Não sei, mas o olhar eu sei!”

Há coisas que não é preciso perguntar. Para Dona Maria, a velhice tem sido a melhor fase da vida. Faz o que quer, aposentou-se, os filhos se casaram e saíram de casa. “Adoro minha família, mas pela primeira vez sinto liberdade e estou estudando, sempre sonhei com isso e sabia que um dia ainda iria realiza-lo.” A renda é de um salário mínimo. “Minha vida é simples, penso simples (quando me diz isso, logo penso: que coisa mais sofisticada!) e agora estou fazendo bordados para ganhar um dinheirinho extra, mas, para falar a verdade, é prazer mesmo!” E ainda quer encontrar um novo amor (ou o antigo, quem sabe). Ela está aberta a coisas novas na vida. História linda, não é mesmo?

Mas, voltando ao analfabetismo, acho que do mesmo jeito que o governo faz campanha para as crianças irem para a escola, deveria fazer o mesmo e convidar os velhos, batendo de porta em porta. A maioria está na área rural ou perto da gente, fazendo faxina onde moramos ou trabalhamos. Basta se importar, lembrando que quem não sabe ler ou escrever também produz cultura. Mas a chance de estudar precisa ser oferecida a todos. Concorda?

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Showing 2 comments
  • marlene
    Responder

    Triste mesmo! Minha faxineira é analfabeta mas não quer estudar de jeito nenhum! Diz que não é tempo mais… Marlene

    • admin
      Responder

      Pois é Marlene, ela precisa entender que sempre é tempo se ela deseja! A autoestima em baixa, geralmente, faz a pessoa achar que não merece, entre outras coisas… Converse com ela! e bjs. Obrigada pelo contato viu?

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